Religiões Afro-Brasileiras e a Lei: Criminalização da Intolerância

Apesar de vivermos em um país oficialmente laico, a liberdade religiosa no Brasil ainda é um privilégio de poucos. Para as religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda, o direito de existir com dignidade segue sendo uma batalha diária. Terreiros são invadidos, símbolos sagrados são destruídos, líderes religiosos são agredidos — e, muitas vezes, o que o Estado oferece em resposta é o silêncio.

Segundo o Disque 100, as religiões afro-brasileiras são as maiores vítimas de intolerância religiosa no país. Isso nos obriga a fazer uma pergunta incômoda: quando a violência se repete, e o poder público se mantém omisso, não estamos diante de uma conivência disfarçada de neutralidade?

Este artigo propõe uma análise crítica da proteção legal das religiões afro-brasileiras no Brasil. Vamos falar sobre o que a Constituição garante, o que as leis penais determinam e, principalmente, sobre o que a prática revela. Porque o racismo religioso não é apenas uma questão de intolerância — é uma violação sistemática de direitos fundamentais. E calar diante disso também é uma forma de violência.

Liberdade Religiosa na Constituição Brasileira

A liberdade religiosa é um direito fundamental no Brasil. Está expressa no Artigo 5º, inciso VI, da Constituição Federal (CF), que afirma:

“é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.”

Em outras palavras, o Estado deve garantir que toda e qualquer pessoa possa professar sua fé — ou a ausência dela — sem sofrer perseguição, discriminação ou violência. Isso inclui a prática dos rituais, a preservação dos espaços sagrados e o respeito à cultura religiosa de cada povo.

O princípio da laicidade do Estado brasileiro, presente no Artigo 19, inciso I da CF, também reforça esse dever, ao proibir que o poder público estabeleça cultos religiosos ou mantenha relação de dependência com qualquer religião.

Mas aqui está o problema: embora a Constituição seja clara ao afirmar que todas as religiões devem ser protegidas igualmente, na prática, algumas são tratadas com mais respeito e legitimidade que outras.

As religiões de matriz africana, mesmo sendo parte fundamental da identidade cultural brasileira, seguem sendo alvo de estigmatização. Em muitos contextos, ainda são tratadas como folclore, superstição ou, de forma profundamente equivocada e racista, vistas como práticas “do mal” ou “espiritualmente perigosas”. Essa visão distorcida revela um histórico enraizado de intolerância que insiste em associar o sagrado negro à marginalidade.

Esse desequilíbrio revela uma hierarquização religiosa informal, sustentada pelo racismo estrutural e pela intolerância histórica. E quando o Estado não atua de forma efetiva para coibir essas desigualdades, ele falha em cumprir sua missão constitucional de proteger a liberdade religiosa de forma plena.

A Realidade das Religiões Afro-Brasileiras

O Candomblé, a Umbanda e outras religiões de matriz africana fazem parte da alma do povo brasileiro. Elas trazem consigo sabedorias ancestrais, práticas de cura, espiritualidade comunitária e resistência cultural. No entanto, desde o período colonial, essas expressões de fé foram criminalizadas, perseguidas e invisibilizadas.

Em 1890, logo após a Proclamação da República, o primeiro Código Penal brasileiro já previa sanções contra “práticas de espiritismo, magia e sortilégio”, em um ataque direto às religiões afro-brasileiras. A intenção era clara: eliminar do espaço público qualquer manifestação religiosa que fugisse do padrão eurocêntrico e cristão dominante.

Essa criminalização histórica não foi apenas legal — foi social, cultural e simbólica. Terreiros foram fechados à força. Objetos sagrados foram apreendidos como “provas de feitiçaria”. Líderes religiosos foram presos, silenciados ou obrigados a esconder sua fé sob disfarces sincréticos.

Infelizmente, muitos desses ecos ainda ressoam até os dias de hoje.

De acordo com dados do Ministério dos Direitos Humanos, os terreiros continuam sendo os principais alvos de ataques religiosos no país. Em muitas cidades, mães e pais de santo enfrentam ameaças, incêndios criminosos, expulsões e até linchamentos. Crianças são proibidas de usarem trajes religiosos nas escolas. Palavras como “macumba” ou “bruxaria” são usadas de forma pejorativa, reforçando estigmas e preconceitos.

Nas redes sociais, proliferam discursos de ódio disfarçados de ‘liberdade de expressão. Em programas de televisão e templos neopentecostais, ainda se associam orixás a demônios, em uma demonização sistemática das religiões negras.

Essa realidade mostra que a intolerância religiosa no Brasil, quando direcionada às religiões afro-brasileiras, não é apenas uma questão de fé — é também uma questão de raça. E enquanto o racismo religioso persistir, o direito à liberdade religiosa continuará sendo apenas teórico para milhões de brasileiros.

A Criminalização da Intolerância Religiosa

No papel, o Brasil não tolera intolerância.

A Lei nº 7.716/1989, conhecida por combater crimes de preconceito, foi alterada para incluir o preconceito por religião como prática criminosa. Ela prevê pena de reclusão de um a três anos para quem “impedir ou obstar, por qualquer meio ou forma, o exercício de culto religioso”, além de punir a violação de espaços de culto ou a disseminação de discursos de ódio fundamentados na fé do próximo.

Além disso, a Lei nº 9.459/1997 modificou o Código Penal para prever punições em casos de injúria racial, inclusive quando a ofensa envolve a religião da vítima.

Parece o bastante, certo? Mas a realidade mostra que essas normas, apesar de importantes, nem sempre são aplicadas de forma eficaz — e nem com o mesmo rigor que se vê em outras formas de violação de direitos.

Casos de intolerância religiosa contra terreiros e seus praticantes frequentemente são tratados com descaso pelas autoridades. Há falhas na investigação, omissão no atendimento policial e, muitas vezes, a recusa em reconhecer os episódios como motivados por preconceito religioso — especialmente quando a vítima professa uma fé de matriz africana.

A Justiça também tende a desconsiderar o aspecto religioso dos crimes, optando por enquadramentos mais genéricos como “dano” ou “injúria simples”, o que enfraquece a responsabilização dos agressores e inviabiliza políticas públicas de enfrentamento da intolerância religiosa.

Mais uma vez, fica evidente: a letra da lei pode ser firme, mas se sua aplicação for seletiva, o direito não se concretiza.

Omissão do Estado como Conivência

Quando a intolerância religiosa se repete sistematicamente, e o Estado cruza os braços, não estamos mais falando de omissão inocente — estamos diante de uma conivência velada, que legitima a violência por meio do silêncio e da inércia.

A Constituição é clara, as leis são explícitas, os dados estão disponíveis. Então por que, diante de tantos ataques contra as religiões afro-brasileiras, as respostas institucionais continuam sendo tão frágeis? Por que os agressores seguem impunes, os terreiros seguem desprotegidos e os praticantes seguem sendo alvos de estigmatização? Essa omissão tem nome: racismo estrutural.

Você pode se interessar também:O Impacto Devastador do Perfilamento Racial

O Estado brasileiro, historicamente moldado por uma lógica eurocêntrica e cristã, falha em reconhecer como urgência aquilo que afeta corpos negros, crenças negras e territórios negros. Essa falha não é um acidente — é a continuidade de um projeto excludente, que ainda hoje trata a religiosidade de matriz africana como algo a ser marginalizado, “tolerado” e não plenamente respeitado.

A conivência estatal se expressa na ausência de políticas públicas efetivas para proteção dos terreiros. No despreparo de agentes públicos para lidar com denúncias de racismo religioso. Na falta de investigação séria. No arquivamento precoce de inquéritos. Na escassez de condenações.

Mas se o Estado é omisso, a sociedade civil não precisa ser. Denunciar, educar, apoiar e falar por si — e não pelos olhos dos outros — é também resistir. Porque, diante da violência, neutralidade é cumplicidade.

Conclusão: Respeito é Dever, Não Opção.

Respeitar as religiões afro-brasileiras não é uma escolha subjetiva, nem uma questão de opinião ou afinidade pessoal. É uma exigência constitucional, um direito humano e uma dívida histórica. Cada vez que um terreiro é invadido, cada vez que um orixá é demonizado, cada vez que uma criança é impedida de expressar sua fé, o Brasil falha consigo mesmo.

Não basta reconhecer a intolerância religiosa como um problema. É preciso enfrentá-la com seriedade, com políticas públicas, responsabilização efetiva, educação antirracista e proteção real às manifestações de fé que sustentam, há séculos, a resistência e a cultura de um povo.

A omissão do Estado não pode mais ser naturalizada. Quando o poder público não age diante da intolerância, ele rompe o pacto constitucional de respeito à diversidade e alimenta um sistema que escolhe quem merece ter sua fé respeitada — e quem deve ser silenciado.

Por isso, é papel de cada um de nós — cidadãos, juristas, educadores, comunicadores e instituições — assumir o compromisso de dizer, com todas as letras: intolerância religiosa é crime, racismo religioso é crime, e respeito às religiões afro-brasileiras é obrigação legal e moral.

Só haverá liberdade religiosa no Brasil quando ela for plena para todos.

Leia também: Oração Não É Arma: Intolerância Religiosa e o Discurso de Ódio

Obrigada por acompanhar até aqui! Se gostou do conteúdo, compartilhe!

Dra. Andréa Cristhianni é advogada com atuação voltada para os direitos humanos e a proteção dos grupos mais vulneráveis. Comprometida com a justiça social, ela dedica sua prática à defesa e promoção dos direitos fundamentais, atuando para garantir dignidade, liberdade e igualdade para todas as pessoas.

 

 

 

.

 

 

 

Leave a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Scroll to Top